O conceito chave de desenvolvimento tornou-se uma miragem. Interpretado pelos organismos internacionais a certa distância das regras do mercado, confunde a evolução indispensável das sociedades e a reforma das infra-estruturas com a pesquisa do crescimento desenfreado. O desenvolvimento não é portanto mais aquele de todo o homem e de todos os homens que preconizou, entre outros, Louis-Joseph Lebret, mas uma ilusão carregada de fatais consequências. Como remediar? E sobretudo, como não abdicar a revindicação de um outro desenvolvimento? Paul Caspersz tenta dar esta resposta.
O tempo mostra a necessidade de redefinir o conceito de desenvolvimento e de ter uma compreensão clara do que designa este processo. O conceito dominante no decorrer dos anos 1990, promovido pelo Banco mundial e o Fundo monetário internacional, é o de crescimento econômico. As instituições foram impulsionadas, frequentemente com sucesso, as elites políticas e sociais do terceiro mundo, e até mesmo numerosas associações e militantes, a partilhar esse conceito e a sustentar o processo.
O problema é que o significado do desenvolvimento perdeu seu sentido. Quando um mesmo termo é utilizado frequentemente e sobre longos períodos por tantas pessoas e em vários locais, nós admitimos facilmente que ele foi utilizado corretamente. Ou na realidade longe de ser o caso. A hipótese conforme a qual todo mundo sabe no que consiste o verdadeiro desenvolvimento é gratuita e errônea.
Se emancipar da “casta” dos especialistas
A primeira coisa a se fazer, desde então, é encontrar um novo termo ou uma nova expressão para redefinir esse conceito depreciado. É necessário, para isto, ter coragem de se emancipar da linguagem da “casta” dos especialistas ocidentais das ciências sociais. O objetivo de vários teóricos ocidentais do desenvolvimento é mais de ser incluído por seus pares que pelos povos que eles estudam. Romper com a maneira de escrever destes especialistas, tomar a decisão de ser “fora casta”, é o primeiro passo que nos permite salvar o conceito e o processo de desenvolvimento.
Uma vez que tenha-se efetuado esse primeiro passo, nós devemos ter a coragem de nomear este estragado, o conceito atualmente difundido de “desenvolvimento”. Este veneno, é o dinheiro, sua supremacia sob o nome de crescimento econômico, o dinheiro no centro da produção sem fim de bens e serviços, sua acumulação e sua distribuição por natureza ilegal.
A operação de salvamento consiste em instalar no lugar do lucro a todo preço o que nós cremos ser o centro de todo o desenvolvimento autêntico: a pessoa humana dentro de sua comunidade. Essa etapa é muito delicada, pois o dinheiro, o capital e o crescimento – todos interconectados – permanecem para os advogados do livre mercado o centro e o propósito do desenvolvimento. Pior: é até mesmo o nome da defesa do indivíduo que rejeitam toda interferência do Estado dentro dos negócios econômicos. Sem questão, para estes últimos, aceitar os salários mínimos ou o reconhecimento dos sindicatos... Sua teoria de desenvolvimento consiste em dizer que toda pessoa é livre de soçobrar ou nadar por ela mesma dentro do mar econômico, de ser sacudida dentro das agitações de oferta e demanda. O mercado “livre”, conforme esta interpretação, permite aos sortudos passar da pobreza à riqueza. Eles chamam essa teoria de a mão invisível da oferta e da demanda. Não esqueçamos, que essa mão, muito frequentemente, estrangula aqueles que ela supostamente emancipa.
O centro do verdadeiro desenvolvimento é outro: seu “coração” insubstituível deve ser da pessoa humana dentro de sua comunidade. Por fora de sua comunidade, o indivíduo não tem existência independente. Seu destino resulta desde seu nascimento, seguindo o fio de sua vida. Tomemos o exemplo do Sri Lanka. Um funcionário do Banco Mundial em Colombo aceitou encontrar um grupo de militantes muito críticos. O grupo exprimiu seu profundo desacordo com o conceito de desenvolvimento e sugeriu uma outra coisa. Eis aqui as grandes linhas.
Nutrir e sonhar: ter em conta as verdadeiras necessidades
As necessidades para prover as mais importantes, para um desenvolvimento digno do nome, são as necessidades dos pobres. O projeto de subsidiar e de controlar os preços dos produtos de primeira necessidade, a farinha e o açúcar, e de subsidiar sua compra pelo consumidor começou no Sri Lanka em dezembro de 1941. Com diferentes modificações, mas sempre com a idéia de que o dever do Estado é assegurar que ninguém padeça de fome, o projeto foi posto em prática até 1977, depois finalmente abandonado. Em seu lugar, um plano, mal administrado, de boa essência e alimento foi adotado para os pobres em 1977 e recebeu imediatamente um ataque de críticas. Conforme seus difamadores, o projeto era uma heresia econômica, uma imprudência financeiramente insuportável, uma festa de políticos populistas. Ou era o dever de um dirigente budista de assegurar que ninguém dentro do seu reino morresse de fome.
É indiscutível que o projeto foi estabelecido para aprimorar, afim de não distribuir aos “nantis” o arroz gratuito para nutrir apenas cachorros. Assim mesmo, teve-se que aplicar com mais rigor para que o projeto impedisse que várias famílias pobres da ilha morressem de fome.
Temos também o caso do hospital. Dentro do terceiro mundo, aqueles onde faltam frequentemente leitos, e os pacientes devem dormir abaixo das camas já ocupadas, de fora das salas ou sobre macas instaladas sobre balcões, algumas vezes próximos a esgoto e latas de lixo. A primeira taxa de serviço de saúde deve ser, com o nome de desenvolvimento, de equipar com camas todos os pacientes. Se tem um número insuficientes de lençóis e travesseiros e se, até mesmo depois de uma operação cirúrgica, os enfermos são instalados sobre colchões e travesseiros sujos, a prioridade do desenvolvimento é fornecer lençóis e travesseiros limpos.
Alguns meses antes de sua assassinato em 1948, Mahatma Gandhi, propôs um critério: “Quando você estiver em dúvida e você mesmo se obriga por demais, explica ele então, aplique o seguinte teste: recorde-se da face do homem mais pobre e mais frágil que você já encontrou e pergunte-se se o ato que você projetará para ele será útil. Você irá ganhar alguma coisa? Irá render o controle sobre sua própria vida e destino? Em outro termos, dará independência a milhões de pessoas famintas psiquicamente e espiritualmente? Então você verá suas dúvidas e você mesmo se dissipar” ( The Collected Works of Mahatma Gandhi, vol 89) Eis aqui o tipo de prioridades que necessitamos ter coragem de defender.
O pobre não deve ser a periferia do desenvolvimento
Todo programa de desenvolvimento deverá em seguida ter como objetivo a humanização da vida. É dentro da humanização que o desenvolvimento encontra sua mais alta expressão. Um desenvolvimento que encoraja o desejo de adquirir para seu próprio benefício, o o consumismo, o elitismo, a desigualdade econômica e social, é um anti-desenvolvimento. As pessoas devem possuir mais para serem mais, não para serem elas mesmos, dentro do isolamento, mas por todo a comunidade. A humaniza é este “ser mais”. Qualquer pessoa no planeta deve ser capaz de viver uma vida plenamente humana: comer, beber, dormir, dar e receber amor, sentir prazer ou sofrer em função de suas necessidades. Quando, no Sri Lanca, a família de um trabalhador agrícola – o pai, a mãe, os pais, as crianças solteiras ou recentemente casados – deve viver, comer, dormir e procriar em um espaço de 10x12, com um espaço 4 de cada 2 pés fechado por uma cortina fabricada com velhos saris, para um casal recentemente casado, a situação pode ser classificada de inumana.
Ninguém no mundo deveria ter fome, sede, ser sem abrigo e sem amor. Ninguém deveria ser indigente à ponto de não sentir nem alegria nem tristeza. Humanizar o desenvolvimento supõe-se colocar o pobre no coração do processo. É o que o Banco Mundial não tem compreendido. A “rede de segurança” que ele promove nos países onde intervem é um plano de ajuda, atribuído ao de conta-gotas e de má vontade, vencer desde que possível. Neste programa, os pobres não são coração do conceito de desenvolvimento. Estes últimos devem reagir e dizer: “Nós não temos o desejo de estar presos dentro de sua rede de segurança; queremos a justiça que a torna inútil”.
Se o desenvolvimento é a humanização, é fácil compreender, especialmente no terceiro mundo, que o desenvolvimento significa sobretudo liberação – liberação de qualquer que o desumanize. Se o Trabalho, representado pelos trabalhadores da agricultura e da indústria que construíram os monumentos da civilização, devem endireitar a cabeça com dignidade, o Capital, representado pelos financiadores, os proprietários das fábricas ou vastos domínios agrícolas, devem cessar de pesar sobre as costas dos trabalhadores. A humanização é impossível sem liberação.
O oposto do processo de liberação é o de alienação que é o resultado inevitável do modo capitalista do desenvolvimento. Contudo, é necessário reconhecer em qualquer liberdade que o capitalismo jogou um papel liberatório permitindo aos homens quebrar as cadeias que sujeitavam-no na época feudal pré-industrial.
Nessa época, ele tinha apenas um conhecimento imperfeito e frequentemente errôneo sobre as forças da natureza. Os homens eram submissos à estas forças e tinham pouco controle sobre elas. A Igreja e o Estado ensinavam então que a ordem social era de origem divina e que seria mal visto e em todo caso vão querer alterá-la. O capitalismo alterou tudo aquilo. Devolveu ao homem o ser plenamente responsável do seu destino. O problema é que ele trouxe outras formas de alienação, mais cruéis que aquelas do sistema feudal pré-industrial. É contra estas que devemos lutar.
A necessidade de mudança pode resultar de análise social exata ou de uma melhor tomada de consciência dos direitos de cada um e da injustiça de certas situações. Pode vir de uma interpretação radical da religião. Pode também resultar de uma revolução. Ela não implica obrigatoriamente o recurso à violência; mas não podemos excluir por princípio, porque o contrário do amor não é a revolução violenta, mas o ódio.
O objectivo final das atividades de desenvolvimento não é o que a maior parte doadores exigem. É o melhor ser ou a humanização. Desde as escolas maternas nas plantações, desde os programas de formação profissional para os mais pobres, dos programas de alojamentos para refugiados, não podem ser julgados satisfatórios unicamente porque eles atingem os seus objetivos imediatos, visíveis e quantificáveis, mas apenas na medida em que contribuem em uma maior felicidade. Se este objetivo final não é perseguido com obstinação e intensidade, a atividade de desenvolvimento não será somente neutra em relação a humanização da sociedade: será negativa.
Este caminho é difícil. Falhas são possíveis. As pessoas podem não ver construída cinqüenta das sessenta casas previstas. Um projecto de exploração avícola montada por um grupo de ação social em Kandy, no Sri Lanka, para reconciliar dois grupos étnicos violentamente antagônicos pode ser um desastre no ponto de vista financeiro ou de produção de ovos. Mas se as pessoas que construíram as casas ganharam em segurança e dignidade, se os criadores de aves aprenderam a trabalhar juntos, falar e rir juntos, a viver em conjunto e a ter confiança um no outro, o projeto pode ser socialmente um sucesso.
O retorno aos preceitos de Gandhi
O desenvolvimento autêntico é espiritual. Uma vez mais, Gandhi é indiscutível: “A civilização ocidental é material, abertamente material. Ela mede o progresso pelo progresso material […]. Ninguém diz "agora as pessoas são mais verdadeiras e mais modestas". Julgo-o as perto dos meus critérios e utilizo a palavra "satânico" para as descrever… Vocês fazem grande caso das coisas temporais, superficiais. A civilização oriental é por essência espiritual, imaterial. […] De acordo com vocês, quanto mais se tem, melhor é, e vocês realizam-se nesta crença.”(Ibid., Vol. 48)
A dimensão espiritual do desenvolvimento deveria orientar, impregnar e influenciar o interior de todas as outras dimensões do desenvolvimento. É ela que produz poetas, filósofos, músicos e artistas. É ela quem torna capaz o amor e o ódio, a devoção apaixonada por uma outra pessoa ou por uma causa. É ela que faz com que o ser humano possa exceder as fronteiras do que é visível e tangível para atingir o sentido mais profundo da vida humana. É ela que torna o homem humano.
A dimensão espiritual não é a dimensão religiosa, aquela que possa incluir. Recordo-me precisamente o dia em que, no início dos anos 80, visitava as famílias de Jaffna que tinham sofrido a repressão do Estado em resposta ao pedido dos Tamouls com respeito a seus direitos. Eu acompanhava um amigo singalês marxista. Acabávamos de visitar uma família afetada. Fomos os dois ao mesmo tempo entristecidos pelo que tínhamos visto e ficamos cansados mental e fisicamente. Quebrando o silêncio, perguntei-lhe : “Porque fazemos tudo isso, com tão pouco esperança de sucesso? Porque tomamos todos os riscos ? Porque vamos de casa em casa, para entender estas pessoas e ouvir o que elas suportaram ?” O meu amigo me disse: “porque nós somos humanos e eles são humanos.”
Deve-se procurar paz social e harmonia
Posto isto, não se pode duvidar que um bem estar econômico seja crucial. É necessário para ele mesmo e necessário para uma vida humana integral. O bem-estar econômico significa, toda a satisfação das necessidades básicas dos homens. As pessoas têm necessidade de uma boa alimentação, nutritiva, como se diz, aquilo que um nutricionista chama de um regime equilibrado em carboidratos, proteínas e lipídios. Eles possuem a necessidade de roupas em número suficiente, não somente para cobrir sua nudez, mas também para poder se vestir regularmente. Têm necessidade de um abrigo correto: uma casa ou até mesmo uma cabana.
Conheço pelo menos um trabalhador social que pensa que o alojamento deveria ser prioritário em relação ao alimento e os vestuários. Dêem um alojamento à uma família, diz ele, e a família fará que haja neste alojamento o suficiente de alimentos e de vestuários. Isto foi experimentado com efeito por Satyodaya, uma organização social em Kandy, no Sri Lanka, no seu plano para habitar setenta famílias deslocadas. É essencial que o desenvolvimento passe também pelos cuidados médicos e das escolas para as crianças. É essencial também um ambiente físico e social favorável socialização das pessoas na comunidade. Nada isto deveria ser ignorado, ainda menos negado.
Não podemos negar que as necessidades evoluem. É necessário contudo guardar do discernimento e fixar objetivos positivos para a comunidade. No Sri Lanka, o crescimento não pode ser autenticamente portador do desenvolvimento sem a condição de efetuar aos Cingalêses a maior estabilidade emocional. No contexto da diversidade étnica que existe no Sri LanKa, um desenvolvimento autêntico do país deveria conduzir a maior paz social, a confiança e a harmonia. Numa palavra, o crescimento econômico deveria fazer estourar os seus próprios parâmetros e conduzir maior felicidade ao mesmo tempo material e espiritual.
É necessário, para isso, liberar as energias. O “gênio dos pobres” vem da sua energia de criatividade e de resistência. Estas forças são ao mesmo tempo física e moral, mas mais moral que físicas. A força moral é promovida pela idéia de que o trabalho de uma pessoa é o seu trabalho, que este trabalho não é requisitado por outra pessoa, para o benefício de qualquer outro. Assim, o verdadeiro desenvolvimento fará que o fruto do trabalho dos homens leve a marca do que o produziu. O trabalhador que constrói ou reforma um pequeno tanque de água para irrigar os campos da sua aldeia é portador deste ponto de vista diferente do trabalhador que efetua um trabalho monótono cada dia para construir um enorme dique ou uma estação hidro-elétrica. Este trabalho é efetuado com desgosto, contra o coração, unicamente pelo salário que procura, enquanto que o primeiro, significa a vida para o trabalhador, a sua família, os seus pais e os seus amigos, para toda a aldeia, é efetuado na alegria e com certo sentido de plenitude.
Isto significa que não é necessário construir um dique ou uma central hidro-elétrica? De forma alguma. Significa apenas que o desenvolvimento deve definir prioridades, saber o que liberará melhor as forças morais e físicas das pessoas.
O desenvolvimento, por último, não deve comprometer o futuro. Este é o tendão de Aquiles do desenvolvimento ocidental. Arruinando o meio ambiente, esgotando recursos não renováveis, poluindo a atmosfera, se apropriando do trabalho e dos vastos mercados, das populações dos países em via de desenvolvimento, este tipo desenvolvimento breve, tem suas perdas. Um dia, os pretos, brancos e todos os povos do terceiro mundo se levantarão. Dirão: Basta! E isto poderia intervir mais cedo nós cremos.
Por Paul Caspersz
PS.: Tradução livre do Francês autorizada por Bernadette HUGER, Centre International Lebret – Irfed por João Baptista
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